quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Aquarius: um tratado de luta



Resistência às empreiteiras, ao projeto Novo Recife, ao governo vigente e ao golpe. Aquarius é, acima de tudo, um tratado acerca da luta. Clara, personagem de Sônia Braga, mergulha no mar da praia de Boa Viagem como quem parece não temer os tubarões. E ela não os teme. Temer jamais!

O segundo longa do pernambucano Kléber Mendonça Filho traz, assim como no anterior O Som ao Redor, um microcosmo muito particular de uma realidade sociopolítica não só inerente à cidade do Recife -onde hegemonicamente é realizado- por isso se configura universal.

Aquarius ganhou repercussão antes mesmo de estrear nas salas do Brasil, vide protesto no tapete vermelho do Festival de Cannes (França), onde concorria em algumas categorias, entre elas melhor filme e atriz. O ato de enfrentamento foi realizado por parte do elenco e produção e alertava acerca do golpe em curso que vivia (ou vive) o nosso país. Nada mais natural, se tratando de uma obra que toca nesta ferida, ainda que sutilmente, isenta de peso de denúncia.

Não é natural, por outro lado, a obra sofrer intervenções políticas na sua distribuição ou em outros setores do processo criativo. Em contrapartida, o famigerado Ministério da Cultura (de existência frágil no governo Temer) mexeu os pauzinhos para destituir a indicação do longa ao Oscar.

Assistimos mais doses de veneno autoritário para o embrutecimento coletivo! São motins subjetivos aos quais estamos sujeitos a sofrer todos os dias, assim como Clara. Assim como Sônia. Tanto personagem como atriz se tornam arquétipos próprios desta obra. Como elas, o filme não foi combatido, como antes se combatia formas de arte consideradas inoportunas. Ou até como era polemizada e crucificada a figura de um sex symbol, como Sônia nos anos setenta. Tal qual a narrativa, aqui a sutileza se faz presente e concebe uma espécie de censura acanhada, sem cruzes ou fogueiras, mas carregada de sordidez em “pequenos” atos: exclusão da indicação ao Oscar, no limite da indicação etária, etc.

E quando essa tentativa de silenciamento é confrontada, na trama, pela resistência de uma figura feminina madura, sem temores, sendo como é -metonímia ao Edf. Aquarius- percebemos que a luta dela é contra convenções. O embate imobiliário é apenas o pano de fundo para todas estas perversões de expectativas que o longa sugere nas entrelinhas.

A personagem de Sônia é como o nome adianta, clara. E a transparência nesta alegoria do ser mostra que ela também é capaz de reproduzir modos tipicamente burgueses, como frequentar restaurantes finos ou até ter um carro importado na garagem - ainda que isso não invalide de forma alguma o mote de sua luta. Mais uma vez Kléber indica que estereotipar minimiza. Por isso saiba que Aquarius irá dizer mais sobre você do que sobre ele mesmo.

Além de toda essa carga subjetiva, o filme é tecnicamente um deleite. Os flashbacks ao Recife de antigamente são primorosamente realizados- um ponto e tanto para o trabalho de direção de arte de Thales Junqueira e Juliano Dornelles.

A trilha sonora diegética, por vezes até verbalizada, trata acerca da força do som e das memórias. O longa também transporta uma certa atmosfera de suspense, que tudo tem a ver com o contexto cavernoso vivenciado pelo país durante sua concepção. Me parece, utilizando de licença poética, que Aquarius se torna ainda mais metafórico, histórico e enérgico por conta esta “coincidência”.

Li uma frase retirada de uma crítica que diz Aquarius ser um presente de Kléber à Sônia Braga. Mas se lutamos, se derrubamos tabus e resistimos, somos todos Sônia. Somos todos Clara.

Obrigada pelo presente, Kléber.


terça-feira, 3 de maio de 2016

A quebra de esteriótipos em Zootopia (2016)


Zootopia desponta mais uma caprichosa animação da Disney. Só que dessa vez, após ensaios em produções anteriores, os estúdios provêm uma obra definitiva de discussão de gêneros e desconstrução destes. O que é interessante e vital para que o público infantil já se familiarize com estes conceitos desde pouca idade. Além de didática, a obra é ousada no sentido de não deixar subtendidas estas deflagrações de esteriótipos, determinismos, sexismos e afins. Absolutamente nada fica nas entrelinhas. Tudo é e está muito claro, tal qual como se configura a realidade fora das telas.

A personagem principal do longa é uma coelhinha que luta por lugar ao sol dentro da carreira que decidiu seguir. Judy é uma policial e enfrenta a descrença de todos, principalmente por ser fêmea. O chefe não confia em seu potencial e a subordina para funções que não lhe cabem. Por sua própria conta, então, assume sozinha um caso de desaparecimento. É daí que a produção começa a reverberar o grito por igualdade de gênero, além de pincelar seus primeiros traços como um verdadeiro noir moderno. Todos os elementos estão aqui: investigação criminal; um crime não resolvido; mistério; sugestão de romance; um anti herói; chefes da máfia e as reviravoltas típicas.


Referências a obras máximas da sétima arte também se fazem presentes. O Poderoso Chefão é a maior delas e de longe a mais interessante porque configura a relação entre mito e realidade. O chefe da máfia é deflagrado como um pequenino rato carcamano que carrega sotaque e uma
rosa no paletó, assim como o icônico Don Corleone, da trilogia de Coppola. Essa é uma das tantas desconstruções de esteriótipos que o filme propõe ao longo da projeção. A série Breaking Bad também é homenageada, porém de maneira mais tímida, numa sequência em que “lobos em pele de cordeiros” são descobertos num vagão manipulando substâncias ilícitas.

A obra de animação engata também críticas extremamente ácidas ao funcionalismo público dos Estados Unidos. Mas como não haver identificação imediata com o Brasil? O departamento de trânsito de Zootopia é unanimemente composto por bichos preguiça, funcionários estes que não negam o nome. A lentidão nos afazeres do trabalho e o corpo mole reinam no local, além de fazer render uma das melhores cenas do filme e ótimas risadas. Afinal, tornar risível certas disfunções sociais e instituições falidas, por vezes, é aliviador.

O filme tem um ritmo que funciona, entretanto o ápice dramático inexiste, deixando uma lacuna numa história que certamente pedia comoção. As reviravoltas se dão, o mistério é solucionado, Judy sai como heroína. Mas nada seria do homem, ou neste caso, o animal (rs), sem a parceria de um amigo, a raposa macho, Nick. A sugestão de romance acaba tornando-se amizade e gratidão. A pitada de sentimentalismo não acontece, mas porque pedir mais de um noir moderno animado e desconstruído? Zootopia é tudo isso ou o que você quiser.

quarta-feira, 30 de março de 2016

A Bruxa




A Bruxa (2015) foi um daqueles filmes que nem tinha conhecimento, mas chegou a mim através do boca a boca de colegas e ganhou meu imediato interesse. O gênero por sua vez já me é convidativo: “terror”, porém engana-se quem pensa ser o terror nos moldes modernos aos quais estávamos adaptados (leia-se cansados). A Bruxa é filme de angustia psicológica, ausente de sustos, que explora o oculto sem perder as rédeas do real. Algo que muito remete ao cinema de Polanski. Coisa de qualidade! Que não víamos desde muito tempo.

Tudo muito bem trabalhado, as cores do longa em escala de cinza, cenários verossímeis, trilha sonora extradiegética com função diegética, assinada pelo canadense Mark Korven (que nos lembra o trabalho do compositor húngaro Gyorgy Ligeti para 2001) e figurino contemplador. Absolutamente em extrema harmonia, todos esses elementos se configuram para que Robert Eggers realize a primeira obra da sua carreira beirando o surreal ainda que vanguardista.

O filme é datado da Nova Inglaterra do séx XVII, onde uma família de camponeses são expulsos da aldeia a qual residiam e vão morar nos arredores de uma extensa floresta. Esse é o ponto de partida para o surgimento de fatos tenebrosos: animais tornam-se hostis, a plantação morre e uma criança desaparece. O elenco praticamente todo infantil ainda que desafiador para a direção, que parece reger com maestria todos os envolvidos, nos mostra um resultado de performances assombrosamente sublimes.

A Bruxa, acima de tudo, é um filme de muitas metáforas e linguagem subjetiva. Bastante do que é dito, não é dito, e sim mostrado sutilmente. O não verbal dá espaço para mensagens simbólicas. E é aí que se esconde a grande sacada do filme. Nas entrelinhas, o espectador atento nota alguns conceitos religiosos muito específicos: a divisão do pão na última ceia; o Santo Graal; o pecado do desejo carnal, etc. Esses fundamentos trazem completude a inúmeras sequências e nos oferecem maior entendimento do que ali transcorre.

Já considero A Bruxa uma obra prima do terror moderno, principalmente por lembrar daqueles que fizeram escola no gênero: O Bebê de Rosemary; O Homem de Palha; De Olhos Bem Fechados. O longa é histórico, cultural e retira da raiz cristã o propulsor de seu medo durante os 93 minutos de projeção. A Bruxa é incompreendido por muitos agora, mas se tornará um clássico num futuro bem próximo, assim como se desenhou a história daqueles que possivelmente o inspiraram.

quinta-feira, 10 de março de 2016

#1 Ensaios poéticos

Papa Metralha


Protestos embevecidos
Buzinas reverberam na avenida
O vento das árvores ao desgrenhar galhos
Frutos da própria carne ao doar

O cão indigna-se e rosna em ato de desacordo
Late como quem clama sossego
E quem não?
Paz de espírito citadina é utopia omissa
Adaptada, sentida. Doída

Crueldade cânone nos tornam nocivos
Polifônicos, agonizantes
Reflexões múltiplas do audível

Excrementos ressonantes
Nós, hedonísticos, ambulantes,
por conseguinte, papas metralha.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A superioridade das animações no Oscar 2016


No ano presente, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas sanciona uma premiação de produções live action (de atores reais) com padrões textuais e estilísticos insossos. Pouco se viu de profundidade entre as obras concorrentes. A ausência de longas como 45 anos (Inglaterra) e Tangerine (EUA) já sinaliza certo desconcerto entre as escolhas na categoria filme. Obras simplistas, puramente contemplativas como O Regresso e Perdido em Marte elucidam o que é (quase) uma constante entre os outros 6 candidatos ao prêmio.

Outra lacuna (não menos importante) gerou extrema polêmica em Hollywood: o “desprezo” por artistas negros. É sabido que a Academia não é um corpo muito heterogêneo. De acordo com um estudo publicado em 2012, pelo jornal Los Angeles Times, 94% dos atores são brancos e 77% são do sexo masculino. Fácil imaginar que a falta de diversidade será refletida nas premiações, onde o ostracismo racial e de gênero faz morada. #OscarsSoWhite

Todavia, se há algo de notoriedade que vale destaque na competição deste ano é sem dúvidas a categoria das animações. Os 5 filmes concorrentes, incluindo a grata surpresa, O Menino e o Mundo (Brasil), de Alê Abreu, trazem na suposta infantilidade que o desenho empresta, a maturidade para tratar de conceitos muito específicos.

Definitivamente no ano de 2016 o Oscar nos prova que animação não é “filme para criança”(ou somente para elas). O enredo da produção brasileira de Abreu narra a história de um menino que parte em busca do pai e em simultaneidade desperta para o mundo e para a força da imaginação. Na obra temos referências a They Live, de John Carpenter, ao tratar claramente da exploração de mão de obra e sociedade de consumo. E porque não também menções estéticas a Metropolis, de Fritz Lang e a oprimida cidade dos operários? Além disso, como não recordar de Se Meu Apartamento Falasse, do mestre Billy Wilder? O personagem vive pra trabalhar, e trabalha pra viver, finalmente retorna à casa depois de uma longa jornada de trabalho, esquenta sua comida congelada, e solitário assiste aos truques de uma mídia dominadora através da tela de um velho aparelho televisivo. Ainda que explorando conceitos tão pesados a narrativa de Abreu consegue ser poética e sensível. Um filme forte. De cores mil. Uma grande aquarela, regada a sonoridades majestosas, melodias marcantes, compostas em grande parte pelo artista Naná Vasconcelos. A obra se torna muito peculiar também porque é extremamente sensorial, ao passo que a linguagem verbal é deixada de lado. Eu diria este ser um dos maiores acertos do cinema nacional em anos.

Já no formato artesanal de stop-motion (a animação quadro a quadro utilizando bonecos de massa de modelar) temos em competição o americano Anomalisa e o britânico Shaun, o Carneiro. Anomalisa por Charlie Kaufman, roteirista de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças; Quero Ser John Malkovich; Synecdoche, New York; Adaptação; e outros sucessos. Shaun, produzido pelos estúdios da Aardman Animations, recheado de emotividade traz os personagens que nasceram no terceiro curta metragem de Wallace & Grommit, A Close Shave (1995), e que depois acabaram ganhando uma série própria, com episódios divididos em 4 temporadas. Assim como na série, no filme não há diálogo, embora os animais se apropriem de vários trejeitos humanos, o que acaba criando parte da atmosfera de humor do longa.

Não há durante toda projeção um único frame que não tenha um propósito bem definido. Tudo está muito bem amarrado pelos roteiristas e diretores Mark Burton e Richard Starzak. Sem excessos, os dois conseguem ao mesmo tempo apresentar os personagens a quem nunca viu Shaun e também revisitar situações da série. Entretanto, a produção permanece sendo minha menor aposta para vencer.

Anomalisa, por sua vez, acompanha Michael Stone, pai de família que está de passagem por uma cidade para palestrar. Aparentemente Stone está alheio a tudo e todos, as vozes que ouve parecem ter todas o mesmo som, e até as trivialidades parecem aflitivéis, como interagir com um taxista ou pedir comida no hotel. A artificialidade do stop-motion reforça tamanha estranheza quando até mesmo se mover parece uma tarefa árdua para Michael. Mas é no desejo carnal da infidelidade que ele encontra a solução contra a prostração constante.


É nesse ritmo que filme ganha seriedade de um drama adulto, com direito a nus frontais, cenas de sexo e diálogos introdutórios ao mal-estar contemporâneo personificado no próprio Michael e no vazio de sua vida.
A metáfora do hotel ser um não-lugar suspenso da realidade me recorda em muito algumas sequências de Barton Fink, dos irmãos Coen, onde o dramaturgo Fink vai para Hollywood escrever roteiro para um filme B. Ele se hospeda num hotel e objetiva ficar longe de tudo para trabalhar, quando é acometido por um súbito bloqueio criativo. Michael e Fink, perdidos em suas próprias escolhas.

Charlie Kaufman, portanto, continua sendo um amplificador em problematizar nossas angústias modernas e narrá-las. Anomalisa encontra vantagem em ser exatamente todo esse grande drama intimista que duvidaríamos encontrar numa animação.

É feliz também notar as diversas nacionalidades das obras em competição, a exemplo de mais uma trazida pelo sublime Estúdio Ghibli, As Memórias de Marnie (Japão). O longa escrito e dirigido por Hiromasa Yonebayashi é definitivamente um produto da casa, que faz dessa história de fantasmas um dos filmes mais "terrenos" do Estúdio Ghibli. 

As Memórias de Marnie trata sobre a amizade de Anna, uma menina solitária, enviada para morar temporariamente com seus tios para cuidar da saúde, e Marnie, uma misteriosa jovem que Anna acredita ser fruto de suas fantasias. O romance infanto juvenil contempla os dois motes principais dos filmes do Ghibli: o contato com a natureza e o elemento feminino. Além disso, As Memórias de Marnie substitui o onírico por um drama mais introspectivo e de contato com o mundo. Embora a trama de As Memórias de Marnie se desenrole entre lembranças e sonhos, tudo de que Anna precisa para crescer é palpável e está na natureza. O longa se aproxima também de emular as dores do crescimento, que justamente são esses instantes de comunhão mais direta com a natureza. Uma obra arrebatadora!

Entretanto, não escondo de quem perguntar: meu favorito permanece sendo Divertida Mente (EUA). A Disney em mais uma parceria com a Pixar retorna à sua melhor forma nesta animação escrita e dirigida por Pete Docter, conhecido pelos anteriores Up, Altas Aventuras; Os Incríveis; Toy Story; WALL-E e outros tantos.

O que mais me impressiona aqui é o roteiro, porque temos o estudo de conceitos completamente abstratos. Afinal, a trama gira em torno (e dentro) da mente de uma garotinha. Então como não relacionar esta obra com Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo mas Tinha Medo de Perguntar, de Woody Allen? As referências são claras e maravilhosas.(Vejam também!) Enfim, dentro da garotinha Ridley estão os verdadeiros protagonistas, as cinco emoções responsáveis por sua condução: Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojinho (ou repulsa). Cada emoção possui cor e temperamentos próprios, num primoroso estudo imagético. Na verdade, Divertida Mente é psicologia pura. Vários são os conceitos adaptados em alegorias: o poder do inconsciente e sonhos; a sexualidade e até mesmo a depressão. Divertida Mente discursa ainda contra a vilanização da tristeza e mostra a importância de lidar com ela no cotidiano, ao invés de afugentá-la de toda maneira.

A Pixar conseguiu, ao longo dos anos, criar universos bastante criativos a partir de situações inusitadas. Assim foi com Toy Story (universo dos brinquedos), Procurando Nemo (a vida no oceano), Monstros S.A. (uma criança como ameaça aos monstros) e outros tantos. Com Divertida Mente o estúdio se superou, porque além de tudo ainda teve que buscar meios extremamente criativos para tornar concreto e viável algo que não é palpável, tornando a produção digesta para todos os públicos.

Uma pena pro Brasil concorrer no mesmo ano de uma produção tão... tão “apelativa”, no melhor sentido que a palavra possa ter. Divertida Mente tem tudo para levar a estatueta e provavelmente levará.


quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Top 5 filmes 2015



Em 2015 muitas gratas surpresas no mundo cinematográfico surgiram e me fizeram reafirmar a confiança, em especial, na consistência da produção nacional. Sintetizo, neste texto, cinco películas, entre elas, duas nacionais, que mais me encheram os olhos neste ano que chega ao fim, seja pela densidade de seu discurso, pela desconstrução estética, ou até pelo destemor em buscar na tradição literária as sementes para criatividade imagética.


5. Love, de Gaspar Noé

Em Love, primeiro longa 3D de Noé, a narrativa não-linear não dissimula ou camufla, e sim desnuda o estudo acerca dos recorrentes estágios da história de um casal: o ideal romântico, quase platonizado, a posse, a traição, o desencanto e o desapego sofrível do término. Aqui, o honesto Noé nos insere em profundidade na rotina dos amantes, quase como voyers – o artifício do fade out em repetição curta e rápida torna isso ainda mais verossímil. O diretor nos promete novamente algo em completa contramão ao habitual, e em mais uma de suas experiências sensoriais - mais sentimental do que sensorial, por assim dizer -, trouxe-nos o amor como pauta para discussão. Ok, tema desgastado pela abordagem facilitadora de identificação. Só que o que Gaspar faz é ainda assim inédito. Ele recheia o longa de cenas de sexo explícito e discussões de gênero em torno de sexualidade e fidelidade. Nada mais natural, visto que o sexo é inerente às relações humanas, sejam elas quais forem. Censurar isso é como ignorar nossa existência.

Lágrimas, sangue, esperma: os fluidos quais tipificam nossa pluralidade estão em comunhão potencializada em Love. A linguagem metalinguística, por sua vez, é a grande protagonista da obra que torna-se uma estonteante combinação entre hiper-realidade e vanguarda, e, sem propor classificações de gênero, supera qualquer tipo de convenção. Uma experiência cinematográfica que não se pode deixar de ter.


4. A Pele de Vênus (La Vénus à la fourrure), de Roman Polanski



Produzido em 2014, mas em cartaz somente em 2015, é em A Pele de Vênus que Polanski se desnuda. Isso porque o diretor parece tratar de questões pessoais da forma mais franca possível, num jogo metalinguístico que expõe em demasia a figura do próprio artista. O livro do século XIX que deu origem ao roteiro do filme, trata do fetiche de um homem que se torna escravo de uma mulher, com direito a chicotes e afins. O livro em si já é autobiográfico, visto que o escritor austríaco Leopold von Sacher-Masoch reproduziu as relações de dominação que mantinha em sua vida íntima. O masoquismo, tema principal do romance, é um termo criado a partir do sobrenome do escritor.

No filme de Polanski, adaptação ao cinema da peça homônima de David Ives, um diretor de teatro está em busca uma atriz principal para sua releitura do livro e o processo também traz à tona vários dos seus conflitos. O filme, que se passa inteiro num teatro, é composto pela disputa de poder entre o artista e sua musa. Para isso, Polanski intercala o onírico e o mundano, num exercício que nos relembra de que a atriz jamais poderia ser somente um arquétipo fruto da fantasia.

De modo geral, A Pele de Vênus, então, é o resultado das inúmeras cruzes que Polanski carregou ao longo da vida, além de uma representação incontestável de relações de sexo e culpa que o cineasta exorciza na sua obra. Embora este seja um filme genuinamente aberto por tratar de filosofia, arte, autoconhecimento, Polanski é um impecável maestro da encenação, na noção mais pura do teatro, que é tornar a linguagem verbal uma expressão corporal.


3. Boi Neon, de Gabriel Mascaro

O pernambucano Boi Neon e traz um microcosmo muito particular, o dos trabalhadores nômades de vaquejadas, obrigados a viajar entre cidades onde os eventos são sediados. A função de Iremar (Juliano Cazarré) é preparar os bois para os torneios, ao mesmo tempo que neste ínterim sonha em se tornar desing de moda. Um “boi neon”, um “vaqueiro estilista”, utopias discrepantes, distantes, quase irreais. Todavia, o personagem insiste em desenhar roupas, criar modelos, até que, assim como os bois, imprensados entre as cercas, percebe que não há escapatória. Sonhar é consentido, pois dinamiza o corriqueiro de nossas vidas, desde que a realidade nos aprisione logo em seguida.

Gabriel Mascaro trabalha na densidade de um enredo que não nos engana: por mais onírico que pudesse ser, há uma pontual perversão de expectativas. A frustração toma o lugar da idealização.O longa-metragem declara também que rótulos reduzem nossa pluralidade. Julgar deliberadamente é minimizar o ser. As figuras de Galega (Maeve Jinkings) e sua filha, a garotinha Cacá (Alyne Santana) refletem justamente isso, a dureza de uma vida onde a mulher é subjulgada por realizar um trabalho “genuinamente” masculino.

Tecnicamente: muita luz natural, fotografia escurecida em planos fechados, personagens imprensados por cercas e cortes abruptos. Tudo isso através de nós mesmos, espectador observador de uma narrativa de formas cronologicamente lentas, uma rotina sem fim; linear. Boi Neon se preocupa com o futuro, mesmo que apenas por meio de idealismo, apresentado em suas fragilidades, incoerências e decadências.


2. Que Horas Ela Volta, de Anna Muylaert



Regina Casé assustadoramente impecável no papel da empregada Val, que trabalha para uma família de elite em São Paulo, não vê sua filha há tempos. Ao exercer a função de doméstica, inconscientemente a substituiu pelo filho dos patrões que ajudou a criar. No entanto, Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, sai de Pernambuco para prestar vestibular em São Paulo e o reencontro com a mãe se torna uma luta de classes dentro do casarão, onde o filme hegemonicamente se dá.
Regina Casé traz a anulação do estereótipo da nordestina tipicamente mostrada nos dramas novelescos da Globo. Já Camila Márdila nos revela a indignação que não há na personagem de Val, a revolução. Já a patroa vil (Karine Teles), beira uma caricaturada vilã dos contos Disney, além do pai da família (Lourenço Mutarelli), figura de um homem frouxo e recessivo. A obra é repleta de metáforas e acidez através do elemento risível, e concorre a uma vaga na categoria de filmes estrangeiros na premiação do Oscar 2016.


1. Divertida Mente (Inside Out), de Peter Docter



A Disney em mais uma parceria com a Pixar, retorna à sua melhor forma nesta animação escrita e dirigida por Pete Docter. O que mais me impressiona na obra é o roteiro, porque temos aqui o estudo de conceitos completamente abstratos. Afinal, a trama gira em torno (e dentro) da mente de uma garotinha, Riley, tendo como protagonistas as cinco emoções responsáveis por sua condução: Alegria, Tristeza, Raiva, Medo e Nojinho (ou repulsa). Cada emoção possui cor e temperamentos próprios, num primoroso estudo imagético. Na verdade, Divertida Mente é psicologia pura. Vários são os conceitos adaptados em alegorias: o poder do inconsciente e sonhos; a sexualidade e até mesmo a depressão. Divertida Mente discursa ainda contra a vilanização da tristeza e mostra a importância de lidar com ela no cotidiano, ao invés de afugentá-la de toda maneira. Inclusive, a personificação desse sentimento no filme é uma das personagens mais carismáticas e queridas dos espectadores.

A Pixar conseguiu, ao longo dos anos, criar universos bastante criativos a partir de situações inusitadas. Assim foi com Toy Story (universo dos brinquedos), Procurando Nemo (a vida no oceano), Monstros S.A. (uma criança como ameaça aos monstros) e outros tantos. Com Divertida Mente o estúdio se superou, porque além de tudo ainda teve que buscar meios extremamente criativos para tornar concreto e viável algo que não é palpável, tornando a produção digesta para todos os públicos.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Epílogo: Janela de Cinema 2015



O Janela Internacional de Cinema do Recife chega ao fim de sua oitava edição com 10 dias de pura sinergia em torno das três salas contempladas em 118 sessões, numa soma de cerca de 20 mil espectadores, recorde do festival. Para os espectadores em tentativa incansável de conciliar todas as projeções, apenas um DeLorean ou um vira-tempo o tornaria possível. Haha! Essa colisão constante de filmes longos, clássicos, curtos, novos e de arquivo são acolhidos intimamente pelo público num delicioso processo de triagem individual.

Organizado pela CinemaScópio Produções Cinematográficas e Artísticas, o Janela realizou no último domingo, dia de encerramento desta edição, a cerimônia de premiação. Na competição de longas, o prêmio principal foi para “Futuro Junho”, de Maria Augusta Ramos. O filme também levou menção honrosa do Janela Crítica, além do prêmio de melhor longa pela Associação dos Blogs de Cinema de Pernambuco (ABC/PE).

Os vencedores dos melhores curtas internacional e nacional foram o australiano “Caravan”, de Keiran Watson-Bonnice e “Lembranças de Mayo”, de Flávio C. von Sperling, respectivamente. Já na categoria som, venceu “Mate-me Por Favor”, da diretora carioca Anita Rocha da Silveira. Já as atividades referentes às oficinas do “Aulas de Cinema do Janela”, incentivadas pela Petrobras, ainda estão acontecendo no Portomídia, Bairro do Recife, e contemplam cerca de 35 alunos, entre cursos gratuitos e pagos.

A última sessão transmitida este ano pelo Janela foi a de “Luzes da Cidade”, clássico estrelado, escrito e dirigido por Charlie Chaplin, que também compôs toda a trilha orquestrada do longa-metragem. Além da genialidade evidente, um dos grandes inconformistas do cinema, cujo mote era a liberdade artística completa, sofreu durante anos nas mãos da indústria hollywoodiana. A simbologia presente na escolha desta obra para encerramento do Festival está nas críticas ao sistema, nas desigualdades e outros diversos problemas sociais que o Janela luta incessantemente e que é inerente à filmografia do diretor. Além disso, o romantismo no modo de enxergar e viver a vida de Carlitos também é um dos emblemas que o evento carrega irrefutavelmente.

A maratona fílmica, a descoberta de vertentes cinematográficas, as novas amizades, os aprazíveis encontros em torno dos cinemas, a mobilização antes das sessões, as conversas fervorosas aos pés dos rios Capibaribe e Beberibe... Só nos resta lamentar por ter sido tão efêmero. Mas ano que vem tem mais!