terça-feira, 27 de outubro de 2015

Egolatria: argumento risível em Zelig, de Woody Allen

Aqui, sardônica por natureza, a película de 1983, concebida pelo cineasta estadunidense, Woody Allen, é pioneira em estilo e linguagem. Assinatura do gênero mockumentary, ou documentário ficcional, é acima de tudo díspar na esfera didática por discutir, atrelado ao risível, teses da psicologia de massas, além da ufana dinâmica do mundo das famosidades e a abordagem circense da imprensa que torna objetificável e, pior, vendável, a figura humana. Nasce a idiossincrática “celebridade fetiche”.

Neste caso, Zelig, vivido no longa pelo próprio Woody, um homem sereno que tem a bizarra capacidade de mutação de aparência e personalidade. Este camaleão humano cria patologias como meio de aceitação social. Numa maior escala, conforme Jean-Jacques Rousseau, filósofo suíço, “o homem é produto do meio”. Zelig, num exercício hiper real, vai gradativamente adquirindo e perdendo valores e princípios, absorvendo absolutamente tudo à sua volta. Aqui o padrão é o mesmo: fugir desenfreadamente do anonimato dentre a multidão ao consubstanciar, equivocadamente, a fama como admiração afetuosa.

O tratamento a que Zelig é submetido, pela Doutora Eudora Fletcher (Mia Farrow), implica em destrinchar a natureza psíquica de sua anomalia durante sessões de hipinose. Do ponto de vista antropológico, a médica deseja perceber e compreender os fenômenos e influências culturais, por serem, o paciente e todos seres humanos, partícipes, elementos do ente institucional específico que garante autoridade ao ser social. A cada geração, internaliza-se, pratica-se e transmite-se tais valores a nossos descendentes. Compreender esta pluralidade em sua individualidade se torna indispensável ao tratamento de Zelig.

Para Durkheim, sociólogo e psicólogo francês, a coerção social, ou seja a força que os fatos exercem sobre os indivíduos, levando-os à conformidade das convenções, acontece quase que instantaneamente. Sem consentimento e escolha. Nesse âmbito, a adesão inconsciente de Zelig reflete o vazio de sua visão de mundo. O indivíduo em meio ao coletivo desorienta o raciocínio, a consciência e a criticidade, tornando-se vulnerável à mesmerização. Woody Allen, em Zelig, prenuncia as origens das formas narcísicas de individuação da modernidade, que surgiriam mais vigorosamente com o advento da internet (redes sociais) e apelo por atenção efêmera.

Tecnicamente, o documentário também é inovador em sua estética. A sobreposição e colagem de imagens beira o impecável. Com o auxílio da técnica do croma key, Woody inseriu os atores em filmagens reais de longas metragens e jornais do início do século XX, antecipando técnicas usadas em outros filmes, a exemplo de Forrest Gump (1994). A obra faz lembrar também do premiado Birdman (2014) pelo uso da metalinguagem ao tratar do fenômeno narcísico e deflação do ego. Já em gênero, pela comédia dramática documental ficcional, Recife Frio (2009), do cineasta pernambucano Kléber Mendonça Filho. As referências são inúmeras, isso porque Woody fez escola ao acertar na universalidade do argumento de um roteiro à frente de seu tempo.