quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Epílogo: Janela de Cinema 2015



O Janela Internacional de Cinema do Recife chega ao fim de sua oitava edição com 10 dias de pura sinergia em torno das três salas contempladas em 118 sessões, numa soma de cerca de 20 mil espectadores, recorde do festival. Para os espectadores em tentativa incansável de conciliar todas as projeções, apenas um DeLorean ou um vira-tempo o tornaria possível. Haha! Essa colisão constante de filmes longos, clássicos, curtos, novos e de arquivo são acolhidos intimamente pelo público num delicioso processo de triagem individual.

Organizado pela CinemaScópio Produções Cinematográficas e Artísticas, o Janela realizou no último domingo, dia de encerramento desta edição, a cerimônia de premiação. Na competição de longas, o prêmio principal foi para “Futuro Junho”, de Maria Augusta Ramos. O filme também levou menção honrosa do Janela Crítica, além do prêmio de melhor longa pela Associação dos Blogs de Cinema de Pernambuco (ABC/PE).

Os vencedores dos melhores curtas internacional e nacional foram o australiano “Caravan”, de Keiran Watson-Bonnice e “Lembranças de Mayo”, de Flávio C. von Sperling, respectivamente. Já na categoria som, venceu “Mate-me Por Favor”, da diretora carioca Anita Rocha da Silveira. Já as atividades referentes às oficinas do “Aulas de Cinema do Janela”, incentivadas pela Petrobras, ainda estão acontecendo no Portomídia, Bairro do Recife, e contemplam cerca de 35 alunos, entre cursos gratuitos e pagos.

A última sessão transmitida este ano pelo Janela foi a de “Luzes da Cidade”, clássico estrelado, escrito e dirigido por Charlie Chaplin, que também compôs toda a trilha orquestrada do longa-metragem. Além da genialidade evidente, um dos grandes inconformistas do cinema, cujo mote era a liberdade artística completa, sofreu durante anos nas mãos da indústria hollywoodiana. A simbologia presente na escolha desta obra para encerramento do Festival está nas críticas ao sistema, nas desigualdades e outros diversos problemas sociais que o Janela luta incessantemente e que é inerente à filmografia do diretor. Além disso, o romantismo no modo de enxergar e viver a vida de Carlitos também é um dos emblemas que o evento carrega irrefutavelmente.

A maratona fílmica, a descoberta de vertentes cinematográficas, as novas amizades, os aprazíveis encontros em torno dos cinemas, a mobilização antes das sessões, as conversas fervorosas aos pés dos rios Capibaribe e Beberibe... Só nos resta lamentar por ter sido tão efêmero. Mas ano que vem tem mais!


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Cría Cuervos x Boi Neon: a identidade utópica do ser


Durante o primeiro final de semana da oitava edição do Janela de Cinema pude contemplar, entre tantas, duas obras adversas em gêneros, períodos e nacionalidades, ao mesmo passo que extremamente congruentes em apresentar a vida de seus personagens principais através de microcosmos da amplitude contextual que os cerca: Cría Cuervos (1973), do espanhol Carlos Saura, e Boi Neon, do pernambucano Gabriel Mascaro (2015).

Em Cría Cuervos, observa-se que a repressão reverbera dentro do seio da família, em tese, instituição de construção do caráter e ufanismo daquela época. Entretanto, a escuridão do lar, as relações tensas e frígidas fotografadas no filme são um convite à claustrofobia, representação da queda do regime fascista espanhol. Aqui encontramos as soluções anti-censura do diretor Carlos Saura, a crítica à falida instituição do casamento, mas acima de qualquer esfera, temos um filme sobre a família: a história de Ana (Ana Torrent) e as nubladas recordações da infância. As mortes da mãe e do pai num curto intervalo de tempo, a hodierna presença da tia, a enferma avó, a amante do pai e o “veneno”, metáfora do ilusório domínio que acreditava ter sobre vida e morte das pessoas à sua volta; a maneira mais fácil que encontrou para lidar com aquela realidade.



Já o tão aguardado pelo público, Boi Neon, foi ovacionado em estreia pernambucana e traz um microcosmo muito particular, o dos trabalhadores nômades de vaquejadas, obrigados a viajar entre cidades onde os eventos são sediados. A função de Iremar (Juliano Cazarré) é preparar os bois para os torneios, ao mesmo tempo que neste ínterim sonha em se tornar desing de moda. Um “boi neon”, um “vaqueiro estilista”, utopias discrepantes, distantes, quase irreais. Todavia, o personagem insiste em desenhar roupas, criar modelos, até que, assim como os bois, imprensados entre as cercas, percebe que não há escapatória. Sonhar é consentido, pois dinamiza o corriqueiro de nossas vidas, desde que a realidade nos aprisione logo em seguida.


Gabriel Mascaro trabalha na densidade de um enredo que não nos engana: por mais onírico que pudesse ser, há uma pontual perversão de expectativas. A exemplo da cena em que uma revendedora de cosméticos convida o vaqueiro a visitar uma fábrica têxtil, na qual trabalha como vigilante, aproximando Iremar do mundo almejado, no entanto impedindo que mexa nas máquinas. A frustração novamente toma o lugar da idealização. Logo em seguida, uma extensa e lasciva cena entre os dois faz cair por terra qualquer convenção de que o personagem pudesse ser homossexual. O longa-metragem declara que rótulos reduzem nossa pluralidade. Julgar deliberadamente é minimizar o ser.



As duas obras, além da identidade simbólica traduzida em âmbitos minimizados, emprestam, quase que organicamente, ares de surrealismo em diversas sequências, além de engatar uma espécie de um humor dramático, por assim dizer. Porém, acredito que o grito contra a misoginia também ressoe em ambas. A mãe de Ana, em Cría Cuervos, representa a fragilidade feminina em tempos fascistas, de disciplina militar e bons costumes. Esquecida, traída, sofrida. Já as figuras de Galega (Maeve Jinkings) e sua filha, a garotinha Cacá (Alyne Santana) em Boi Neon, refletem a dureza de uma vida onde a mulher é subjulgada por realizar um trabalho “genuinamente” masculino. Além disso, são vítimas de abandono  do marido de Galega, pai da menina.



A infância roubada, portanto, também é tema recorrente nos longas. Ana, em Cría Cuervos, uma criança que encontra nessa fase a mãe dos seus traumas. Com Cacá, em Boi Neon, não é diferente. Afinal, somos o produto dos nossos pais. Um resultado de sucessivas transferências dos arquétipos que nos rodeiam. Essas duas meninas sofrem a dor da ausência daqueles que amam, e acima de tudo, a dor da presença daquilo que tentam negar progressivamente através de sonhos: a aflita existência.

Cría Cuervos explora os caminhos da memória, o significado que podemos dar às lembranças, o acerto de contas com o passado que o presente reivindica. Tecnicamente: o claro e escuro, os locais hermeticamente fechados, o encarceramento, as regras de como se portar a mesa, o abandono transposto em objetos como a piscina vazia, o descampado, a gaiola do animal de estimação. Tudo isso através do olhar de Ana, numa narrativa com diferentes temporalidades; não-linear.



Boi Neon se preocupa com o futuro, mesmo que apenas por meio de idealismo, apresentado em suas fragilidades, incoerências e decadências. Tecnicamente: muita luz natural, fotografia escurecida em planos fechados, personagens imprensados por cercas e cortes abruptos. Tudo isso através de nós mesmos, espectador observador de uma narrativa de formas cronologicamente lentas, uma rotina sem fim; linear

As obras convergem dentro de equivalências, porém não temáticas, textuais ou técnicas. O ponto de confluência é o estudo da identidade multíplice dos personagens, seus anseios e inquietudes. O título “Cría Cuervos” deriva de um ditado espanhol: “crie corvos e eles te arrancarão os olhos”, mas quais seriam os corvos de cada um de nós? E os de Ana? E os de Iremar? E os de Cacá e Galega?




quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Prólogo: Janela de Cinema 2015


Estamos a apenas dois dias do início do Festival mais aguardado pelos entusiastas e amantes do cinema pernambucano: o Janela Internacional de Cinema do Recife. Improvável que não haja sobressalto acerca da espera por essas duas semanas de overdose fílmica, contaminante dos ares provincianos com uma fervorosa espécie de sinergia artístico subversiva. Parece-me que durante estes 15 dias a desesperança política e a falta de crença citadina dão lugar a uma pontual sensação de refúgio que só se pode encontrar na completude da sétima arte.

O Festival, que marca sua oitava edição, desta vez traz duas novidades. A primeira é que este ano os três cinemas de rua da cidade contemplarão a projeção dos filmes de 6 a 15/ 11: Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Derby), Cinema São Luiz (Boa Vista) e o recente Cinema do Museu do Homem do Nordeste (Casa Forte), alternando entre estreias, sessões especiais, debates e reprises. A segunda boa nova é que a venda de ingressos (rapidamente esgotados) se deu também através de plataforma online, o que facilitou em muito a procura por conta da comodidade. Afinal, no ano anterior a organização do festival sofreu severas críticas do público quanto às intermináveis filas que circundavam o Cinema São Luiz e as muitas horas gastas em pé para garantir as entradas. A polêmica chegou até virar motivo de piada em evento de rede social: 


De qualquer forma, é de encher os olhos ver a comoção das pessoas desde a quebra das atividades cotidianas para compra antecipada dos ingressos (mesmo com o advento online este ano, houve grande procura física), até o frenesi das filas momentos antes de cada sessão: é a magia genuína do cinema de rua que só o Janela consegue resgatar.

A foto abaixo foi concebida às 16h desta quarta (6), no Cine São Luiz. // Créditos: Adriano Gomes

Acredito, por outro lado, que o público de Festival venha crescendo, porém sofrendo mutação ao longo das edições. O Janela chega com mais popularidade até mesmo do que o Cine PE. Talvez se deva pela valorização legítima das pequenas às grandes produções locais, liberto de certos vínculos governamentais, além de estimular a consciência crítica do público e entusiastas ao preocupar-se com a feitura de oficinas, palestras, debates e programas de incentivo à criação, a exemplo das vinhetas.

Confira a Vinheta Fight The Power, de 2014:


As oficinas oferecidas este ano são efeitos visuais (VFX) para filmes de baixo orçamento, gratuita e informativa acerca das ferramentas atuais para propor soluções no processo de criação de um filme; oficina Super 8, que comemora os 50 anos de existência deste formato; e a oficina Janela Crítica, destinada a cinéfilos que tenham interesse em exercitar um olhar crítico para o cinema por meio da escrita ao vivenciar esta prática durante todo o festival.

Em 2015, novamente com os fortes apoio do Funcultura e patrocínio da Petrobras, o Janela exibe 118 filmes de 21 países, dentre competição de curtas e longas, além do diferencial de mostras como a “Ghotic Films”, seleção do gênero Gótico Britânico com os títulos: Os Inocentes; Inverno de Sangue em Veneza; A Noite do Demônio; O Homem de Palha; A inocente Face do Terror e outros. Uma grata surpresa para os amantes do terror psicológico onírico, que a grosso modo possui todos os elementos característicos de um filme gótico: castelo lúgubre de alas abandonadas ou em ruínas, corredores úmidos, catacumbas, lendas tenebrosas, maldições ancestrais e até rituais pagãos. Além de vilões perversos, da jovem inocente, vítima maior dos horrores, e o herói – contra as forças do mal desencadeadas.

Imperdível também é a cartela dos clássicos, que contempla diretores consagrados: Quentin Tarantino (Jackie Brown), Ethan e Joel Coen (O Grande Lebowski), Alfred Hitchcok (Intriga Internacional), Charlie Chaplin (Luzes da Cidade), e outros.

Já o programa Cinema de Rua exibirá curtas temáticos sobre aqueles feitos essencialmente na rua e a mostra Filmes de Ação, um apanhado de produções pernambucanas dos últimos cinco anos, criadas por realizadores envolvidos com a causa do Cais José Estelita. A mostra é muito especial porque esses registros foram concebidos como resposta coletiva às decisões de ocupação pública indevida dos espaços da cidade. A proposta é repensar a urbanidade do Recife sem mitigar discurso político, como é recorrente na imprensa. O que carimba mais uma vez o comprometimento social dos envolvidos no Festival.

Entretanto, acima de qualquer esfera, o Janela carrega enorme natureza nostálgica: desde a exibição dos clássicos até as sessões bossa jovem (ao criar retrospectiva das antigas projeções matinês do Cine São Luiz), além dos primorosos ingressos que ensaiam a simbologia de verdadeiros souvenirs. A janela se abre e nos é permitida uma eminente viagem no tempo. As vinhetas funcionam como portais para um universo imaginativo, de cores, lembranças e até de saudade antecipada do momento presente. O frívolo e imediato dão lugar ao excecional, emprestando sabor ímpar aos eventos que ali ocorrem. Uma experiência sensorial de expectativas dentro de um pequeno trecho temporal: fazer o público aguardar o ano inteiro por isso é sem dúvidas o conceito do Festival.

Nesta sexta (6), em sessão especial de abertura do Festival, o filme Boi Neon, do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro (Doméstica; Ventos de Agosto), será exibido pela primeira vez no Recife. No elenco, Juliano Cazarré e Maeve Jinkings. Boi Neon acompanha a história de um vaqueiro que sonha em entrar para o mundo da moda. Há muita expectativa em torno do longa que até então já foi premiado em mais de cinco festivais, entre eles Veneza, Toronto e Rio. 

O valor dos ingressos para as sessões do Janela são super acessíveis e vão de R$2 a R$7, a depender do cinema. Se eu fosse tu, eu ia!
Para acessar a programação completa: www.janeladecinema.com.br