terça-feira, 10 de novembro de 2015

Cría Cuervos x Boi Neon: a identidade utópica do ser


Durante o primeiro final de semana da oitava edição do Janela de Cinema pude contemplar, entre tantas, duas obras adversas em gêneros, períodos e nacionalidades, ao mesmo passo que extremamente congruentes em apresentar a vida de seus personagens principais através de microcosmos da amplitude contextual que os cerca: Cría Cuervos (1973), do espanhol Carlos Saura, e Boi Neon, do pernambucano Gabriel Mascaro (2015).

Em Cría Cuervos, observa-se que a repressão reverbera dentro do seio da família, em tese, instituição de construção do caráter e ufanismo daquela época. Entretanto, a escuridão do lar, as relações tensas e frígidas fotografadas no filme são um convite à claustrofobia, representação da queda do regime fascista espanhol. Aqui encontramos as soluções anti-censura do diretor Carlos Saura, a crítica à falida instituição do casamento, mas acima de qualquer esfera, temos um filme sobre a família: a história de Ana (Ana Torrent) e as nubladas recordações da infância. As mortes da mãe e do pai num curto intervalo de tempo, a hodierna presença da tia, a enferma avó, a amante do pai e o “veneno”, metáfora do ilusório domínio que acreditava ter sobre vida e morte das pessoas à sua volta; a maneira mais fácil que encontrou para lidar com aquela realidade.



Já o tão aguardado pelo público, Boi Neon, foi ovacionado em estreia pernambucana e traz um microcosmo muito particular, o dos trabalhadores nômades de vaquejadas, obrigados a viajar entre cidades onde os eventos são sediados. A função de Iremar (Juliano Cazarré) é preparar os bois para os torneios, ao mesmo tempo que neste ínterim sonha em se tornar desing de moda. Um “boi neon”, um “vaqueiro estilista”, utopias discrepantes, distantes, quase irreais. Todavia, o personagem insiste em desenhar roupas, criar modelos, até que, assim como os bois, imprensados entre as cercas, percebe que não há escapatória. Sonhar é consentido, pois dinamiza o corriqueiro de nossas vidas, desde que a realidade nos aprisione logo em seguida.


Gabriel Mascaro trabalha na densidade de um enredo que não nos engana: por mais onírico que pudesse ser, há uma pontual perversão de expectativas. A exemplo da cena em que uma revendedora de cosméticos convida o vaqueiro a visitar uma fábrica têxtil, na qual trabalha como vigilante, aproximando Iremar do mundo almejado, no entanto impedindo que mexa nas máquinas. A frustração novamente toma o lugar da idealização. Logo em seguida, uma extensa e lasciva cena entre os dois faz cair por terra qualquer convenção de que o personagem pudesse ser homossexual. O longa-metragem declara que rótulos reduzem nossa pluralidade. Julgar deliberadamente é minimizar o ser.



As duas obras, além da identidade simbólica traduzida em âmbitos minimizados, emprestam, quase que organicamente, ares de surrealismo em diversas sequências, além de engatar uma espécie de um humor dramático, por assim dizer. Porém, acredito que o grito contra a misoginia também ressoe em ambas. A mãe de Ana, em Cría Cuervos, representa a fragilidade feminina em tempos fascistas, de disciplina militar e bons costumes. Esquecida, traída, sofrida. Já as figuras de Galega (Maeve Jinkings) e sua filha, a garotinha Cacá (Alyne Santana) em Boi Neon, refletem a dureza de uma vida onde a mulher é subjulgada por realizar um trabalho “genuinamente” masculino. Além disso, são vítimas de abandono  do marido de Galega, pai da menina.



A infância roubada, portanto, também é tema recorrente nos longas. Ana, em Cría Cuervos, uma criança que encontra nessa fase a mãe dos seus traumas. Com Cacá, em Boi Neon, não é diferente. Afinal, somos o produto dos nossos pais. Um resultado de sucessivas transferências dos arquétipos que nos rodeiam. Essas duas meninas sofrem a dor da ausência daqueles que amam, e acima de tudo, a dor da presença daquilo que tentam negar progressivamente através de sonhos: a aflita existência.

Cría Cuervos explora os caminhos da memória, o significado que podemos dar às lembranças, o acerto de contas com o passado que o presente reivindica. Tecnicamente: o claro e escuro, os locais hermeticamente fechados, o encarceramento, as regras de como se portar a mesa, o abandono transposto em objetos como a piscina vazia, o descampado, a gaiola do animal de estimação. Tudo isso através do olhar de Ana, numa narrativa com diferentes temporalidades; não-linear.



Boi Neon se preocupa com o futuro, mesmo que apenas por meio de idealismo, apresentado em suas fragilidades, incoerências e decadências. Tecnicamente: muita luz natural, fotografia escurecida em planos fechados, personagens imprensados por cercas e cortes abruptos. Tudo isso através de nós mesmos, espectador observador de uma narrativa de formas cronologicamente lentas, uma rotina sem fim; linear

As obras convergem dentro de equivalências, porém não temáticas, textuais ou técnicas. O ponto de confluência é o estudo da identidade multíplice dos personagens, seus anseios e inquietudes. O título “Cría Cuervos” deriva de um ditado espanhol: “crie corvos e eles te arrancarão os olhos”, mas quais seriam os corvos de cada um de nós? E os de Ana? E os de Iremar? E os de Cacá e Galega?




Um comentário:

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