quarta-feira, 15 de abril de 2015

Irréversible


Por vezes o cinema permite arriscar-se em sua forma e linguagem. E, por vezes, essa postura tende a desagradar uma maioria, seja pela impactante conotação do discurso ali inserido, seja por escolhas da direção em assumir um realismo dramático quase intravenoso, atrelado ao controverso. Podemos citar a filmografia do polêmico Lars von Trier para exemplificar esta tendência, no entanto, o cinema francês, mais precisamente em 2002, conseguiu extrapolar o suposto limiar entre o experimental e a vanguarda.

No referido ano, sessões de Irreversível (Irréversible), de Gaspar Noé, ganhavam salas de festivais mundo afora causando uma heterogenia de sensações. Constata-se que espectadores deixaram a projeção antes mesmo da primeira metade da obra, outros testemunham náuseas e até desmaios. A polêmica toda recai sobre a dificuldade em assistir cenas cruas de violência extrema, e no modo como Noé escolhe mostrá-las. O grande argumento de um roteiro aparentemente simples ganha força por ousadas escolhas narrativas da direção. Sim, porque o filme funciona com êxito no que se propõe. O desconforto é inversamente proporcional à qualidade da obra, que aqui é indiscutível. Afinal, uma boa dose de hiper realidade é saudável para que reflitamos temas por vezes deixados às margens.

Mas o grande lance em Irreversível é como a história nos é apresentada; o título já dá a dica. O roteiro é construído de traz pra frente, o que torna tudo ainda mais angustiante, pois o sentimento de impotência é inevitável. Não se pode impedir que o pior se abata sobre cada um dos personagens. Afinal, “o tempo destrói tudo”, como nos é dito logo numa das primeiras sequências do longa. Além disso, a história se divide em grandes blocos narrativos para que o espectador acompanhe toda sequência não linear dos acontecimentos de modo mais sistemático e possa realizar as conexões devidas. Mérito também à edição, que realiza um trabalho extremamente competente neste sentido.

No entanto, é quase unânime sínteses que sugerem a vingança como o leitmotiv do longa francês. Acredito, por outro lado, que a instintividade humana assume caráter “secundário” na obra. O que realmente move toda a narrativa do início ao fim (ou do fim ao início), é uma densa reflexão em cima da vulnerabilidade da figura feminina em sociedade. Tamanha fragilidade é escancarada em momentos chave da narrativa, onde o desencadeamento de ações envolvendo este contexto, nos concebe circunstâncias cruciais para o desdobramento de todo o enredo.

Alex é o microcosmo desta concepção. A personagem é claramente tratada com desrespeito pelo seu companheiro durante uma festa, onde o mesmo faz usos de drogas e relaciona-se com outras mulheres. Alex, por sua vez, decide deixar o local. A moça se dirige à estação de metrô, onde é estuprada além de violentada física e verbalmente de modo gratuito. Esta cena, por assim dizer, é de uma entrega absoluta dos atores envolvidos, e sob o olhar crível de Noé, empresta um alheismo austero ao take, filmado sem qualquer corte. A câmera parece ter sido esquecida ali. Com apenas uma tomada e plano, testemunhamos impotentes ao ato de covardia que, só no Brasil, ainda atinge dados alarmantes. O país registrou entre 2009 e 2011 quase 17 mil mortes de mulheres por conflito de gênero, o chamado feminicídio, que acontece pelo fato de ser mulher. Em outras palavras, uma mulher a cada 90 minutos é vítima deste tipo de violência no país.

Alex, levada numa maca para ambulância pós agressão, ainda é rotulada por um cidadão: “uma prostituta foi estuprada”; ouve-se ao fundo. Este é Noé, mais uma vez num grito contra a misoginia. Afinal, uma mulher jovem, esbelta, trajando vestido, numa estação de metrô tarde da noite só pode ser uma prostituta clamando por estupro! Quanta insanidade da parte dessa moça, não é?!

Ironias à parte, o longa ainda propõe uma aparente observação sobre a efemeridade das nossas atitudes e como elas podem desencadear uma série de consequências drásticas quase instantaneamente sem que possamos revertê-las. É como um grande alerta de “cuidado!” à instintividade do homem, que permanece até mais selvagem que seus ancestrais, os macacos, em prol do seu habitat. Por essa razão a desconstrução de personagem é tão minuciosa. Estética e tecnicamente nos é oferecida uma série de elementos que ilustram este processo inverso de estudo da psiquê: câmera nervosa; longos planos sequência de movimentos aleatórios, por vezes de ponta à cabeça; presença da cor vermelha; trilha sonora perturbadora; tudo isso funcionando como termômetro da concepção narrativa dos personagens em circunstâncias extremas.

Um exemplo da referida desconstrução se dá em apenas pensarmos no personagem do Pierre, que assistimos dilacerar a cabeça de um cidadão com um extintor de incêndio (numa sequência chocante de aparato gráfico impecável), é o mesmo incapaz de fazer mal a uma mosca. Claro que isso nos é mostrado na ordem inversa, ou seja, somente ao final do filme, onde o ritmo já se torna ameno, a câmera aprazível, a trilha contemplativa, e as cores mais claras. O termômetro de Noé nos prova que a vingança só traz o caos.

De toda esta experiência sensorial que é Irreversível, destaca-se a articulação brilhante de imagem e som como principal recurso linguístico no longa. A música (por vezes anempática) não é empregada apenas para enfatizar ações, emoções dos personagens, na verdade tudo funciona praticamente na mesma intensidade da imagem e, juntos, atuam como diálogo.



A sinergia que o longa propõe com o público que o contempla é de uma sensibilidade poucas vezes vista no cinema. E se é na própria obra que o artista encontra espaço para carimbar influências e referenciar aqueles que fizeram escola, Noé finaliza o longa com um travelling num pôster de 2001- Uma Odisséia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, numa possível homenagem a este marco da sétima arte em aspectos visuais, artísticos e filosóficos. Na imagem do feto astral de 2001 reside a simbologia mais palpável de Irreversível: a transformação do ser humano. Noé, assim como Kubrick, deixa a cargo do espectador imaginar este ser e recriá-lo em si mesmo.