domingo, 26 de outubro de 2014

Permanência, de Leonardo Lacca




A densidade da subsistência, o sobreviver na ausência de amar encontram no primeiro longa-metragem de Leonardo Lacca, Permanência (2014), espaço para combustão. Assim como café e água reagem à fervura, o confronto entre Ivo (Irandhir Santos) e Rita (Rita Carelli), outrora unidos num relacionamento esvaído pelo tempo, liquefaz-se em elementos da nostalgia do reencontro. A química entre eles emerge ao nível latente do desejo, entretanto, a impossibilidade de mudança através de circunstâncias reafirmadas num intervalo de separação, comprova o paradoxo temático de que nem tudo provém da efemeridade das coisas. “Você mudou nada. Quer dizer, mudou sim, mas muito pouco”, denuncia Rita.

A conservação dos sentimentos, mesmo que subconscientemente, vem à tona em fotos reveladas, cheiro, toque e memórias carregadas de passado. Para os dois personagens, infindo, o real se oferta fugaz. Revela-se o esplendor inserido naquele curto espaço temporal de proximidade. O querer parte de ambos, mesmo com a notória certeza de que um destino afetivo inexiste. Ainda assim é automática e instantânea a crueza da oferta dos sentidos. Tendem, então, à perceptividade da insatisfação da realidade que os cerca, e da lacuna que um deixou na vida do outro.

Ivo, uma vez hospedado na casa de Rita para que possa apresentar uma exposição fotográfica em São Paulo; ela então casada, porém generosa, oferece a ele o seu novo lar. O longa, reverberação do curta “Décimo Segundo”, também da Trincheira Filmes, sugere a partir deste curto período de convivência entre os personagens, uma atmosfera extremamente densa ao espectador. Inevitável não ater-se às dores da ruptura do que ali havia.

De fotografia pontual, sonoridade sensorial, diálogos fortes de um texto muito bem elaborado, com pinceladas cômicas, referências cinematográficas geniais e alguns regionalismos, o drama se desenvolve e encontra na caprichosa performance de Irandhir Santos, o personagem alter ego do realizador da obra. Assim como François Truffaut e a sua extensão dialética às telas, Antoine Doinel, Permanência torna-se ainda mais especial quando possível identificar características genuínas do diretor; de forma volúvel nos é oferecido detalhes em torno de sua personalidade e visão de mundo, aqui organizados numa escala mais atemporal.

O resultado, portanto, não poderia ser outro, grande expectativa e receptividade nas estreias do Festival do Rio e Janela de Cinema do Recife. Os contínuos aplausos pós sessões quebram o silêncio da reflexão proposto por Permanência, que caracteriza-se uma obra aberta por manter inexplorados os problemas e conflitos vividos pelos dois personagens principais, quando ainda em união. O que houve, afinal? Em sua exploração pela natureza das necessidades, o filme nos mostra os efeitos, mas não as causas. Permanência é sobre o imperceptível que vaga, silenciosamente, por entre as relações humanas.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

La Chinoise

A Chinesa (La Chinoise, 1967) é o que podemos verificar como um ensaio, o balanço minunciosamente previsto por Jean- Luc Godard a exato um ano de antecipação ao cenário que assim se estabeleceria na turbulenta França de 68. O diretor beirou o profético ao criar uma atmosfera de proximidade à juventude pré-revolucionária que protagonizaria os episódios de desobediência civil no país nos anos seguintes. A nós, privilegiados, distante do calor emanado durante o período, nos resta o olhar carregado pela consistente bagagem de opiniões acerca daqueles episódios e suas reverberações.

É recorrente das produções cinematográficas dos anos 60, certa tendência de personagens que representem uma espécie de extensão dialética direta dos conceitos emitidos pelos cineastas que os projetam. Godard se utilizou desse artifício para transmitir pensamentos e até emoções provenientes de sua visão específica como idealizador. De certa forma, o personagem central é o próprio diretor, subdividido em vários outros satélites à sua onipresença camuflada. A Chinesa, portanto, projeta o olhar do realizador diante à vida e o papel do intelectual frente ao mundo.

Há quem diga que com a película, Godard zomba das intenções políticas da geração que ficou marcada na história como o ápice da contracultura, colocando em xeque a vulnerabilidade de seus atos e pondo em pratos limpos a disparidade entre discurso e prática. O filme, antes de tudo, nos insere na rotina de jovens da classe média burguesa e seus estudos em torno do “marxismo-leninismo” através, também e principalmente, do conhecido Livro Vermelho da Revolução Cultural, que consiste numa coletânea de citações do presidente da República Popular da China, Mao Tsé-Tung, como maneira de culto à sua personalidade. O livreto é até hoje considerado o segundo mais vendido na história, atrás apenas da Santa Bíblia.

Godard, então, recheia o longa de metáforas, seja na utilização de depoimentos dos personagens, entrevistas ou ilustrações, explorando as mais diversas formas de se fazer arte: encenação, fotografia, gravuras e performances (aliás, a direção de arte é um show à parte em A Chinesa), tornando-se uma estonteante combinação entre ficção e vanguarda, e, sem propor classificações de gênero, supera qualquer tipo de convenção.

O filme, é mais que uma liberdade artística, sobretudo, é um grito pela liberdade em si, seja esta do indivíduo, da sociedade ou até mesmo do cinema. Além de brincar com toda a capacidade possível de se fazer entender, A Chinesa ainda abala qualquer senso de realidade; sendo este confundido com o ficcional durante a projeção. A exemplo da escolha narrativa não linear, e pondo o espectador como uma terceira pessoa apta a questionar e analisar o comportamento dos personagens ali inseridos, Godard sugere que façamos o posicionamento que nos cabe. Talvez seja esta a função do cinema, essencialmente: levantar, por vezes, muito mais questões, do que respondê-las de fato. É a arte genial de realizar e deixar pensar.

O filme é claramente um discurso contra a hegemonia norte-americana, tanto na forma, quanto no conteúdo, e sugere plasticamente, uma heterogeneidade atípica, um certo caos estético, que é exatamente onde Godard encontra espaço para assinar sua obra, o que ficaria conhecida posteriormente como estética aberta, ou “godardiana”. Além de tudo, A Chinesa é feita essencialmente de metalinguagem. Frenquentemente, durante os seus 95 minutos , são escancaradas etapas do processo de produção de um filme, ou melhor, do próprio filme: claquetes carregadas com o título do longa surgem iniciando os takes; a câmera é desmistificada durante uma outra passagem; o técnico de som recebe close enquanto um ator sentencia: “é por isso que falo!” (sugerindo que há sempre alguém para ouvir/registrar; esse alguém também seria os que assistem a projeção, hipoteticamente). A presença desses elementos e até do próprio diretor é mais uma das ferramentas utilizadas para borrar os limites entre ficção e real. Brilhante!

Por esta razão, o texto de A Chinesa é pesado, recheado de citações e referências à filosofia e à política, ou intricadas relações entre imagem e teoria, fazendo do filme um dos menos populares de Godard. O tom engajado engata poucos pontos carismáticos de identificação, justamente porque é politicamente direcionado aos jovens da época. O objetivo, enfim, beirava o didático: usar o cinema para falar de política para a juventude, a única geração que ocasionalmente conseguiria digerir o fluxo daquele discurso.

Talvez precisemos de uma versão atual brasileira de A Chinesa, uma espécie de releitura para “guiar” o pensamento político de uma juventude que branda por ideais reacionários sem a remota consciência do que colherão num futuro próximo. Godard, bem a frente de seu tempo, deixa um legado: se refere a arte de fazer cinema e cria, involuntariamente, um paralelo entre produção cultural e gastos estatais, que muito se assemelha ao pouco estímulo dado às artes no Brasil. La Chinoise ou A Chinesa, remete, portanto, ao “filme em construção”, representando não apenas a produção, mas a uma continuidade extra-fílmica, onde é sim possível trilhar um caminho diferente, melhor.