Em
2015 muitas gratas surpresas no mundo cinematográfico surgiram e me
fizeram reafirmar a confiança, em especial, na consistência da
produção nacional. Sintetizo, neste texto, cinco películas, entre
elas, duas nacionais, que mais me encheram os olhos neste ano que
chega ao fim, seja pela densidade de seu discurso, pela desconstrução
estética, ou até pelo destemor em buscar na tradição literária
as sementes para criatividade imagética.
5.
Love, de Gaspar Noé
Em
Love, primeiro longa 3D de Noé, a narrativa não-linear não
dissimula ou camufla, e sim desnuda o estudo acerca dos recorrentes
estágios da história de um casal: o ideal romântico, quase
platonizado, a posse, a traição, o desencanto e o desapego sofrível
do término. Aqui, o honesto Noé nos insere em profundidade na
rotina dos amantes, quase como voyers – o artifício do fade out em
repetição curta e rápida torna isso ainda mais verossímil. O
diretor nos promete novamente algo em completa contramão ao
habitual, e em mais uma de suas experiências sensoriais - mais
sentimental do que sensorial, por assim dizer -, trouxe-nos o amor
como pauta para discussão. Ok, tema desgastado pela abordagem
facilitadora de identificação. Só que o que Gaspar faz é ainda
assim inédito. Ele recheia o longa de cenas de sexo explícito e
discussões de gênero em torno de sexualidade e fidelidade. Nada
mais natural, visto que o sexo é inerente às relações humanas,
sejam elas quais forem. Censurar isso é como ignorar nossa
existência.
Lágrimas,
sangue, esperma: os fluidos quais tipificam nossa pluralidade estão
em comunhão potencializada em Love. A linguagem metalinguística,
por sua vez, é a grande protagonista da obra que torna-se uma
estonteante combinação entre hiper-realidade e vanguarda, e, sem
propor classificações de gênero, supera qualquer tipo de
convenção. Uma experiência cinematográfica que não se pode
deixar de ter.
4.
A Pele de Vênus (La Vénus à la fourrure), de Roman Polanski
Produzido
em 2014, mas em cartaz somente em 2015, é em A Pele de Vênus que
Polanski se desnuda. Isso porque o diretor parece tratar de questões
pessoais da forma mais franca possível, num jogo metalinguístico
que expõe em demasia a figura do próprio artista. O livro do século
XIX que deu origem ao roteiro do filme, trata do fetiche de um homem
que se torna escravo de uma mulher, com direito a chicotes e afins. O
livro em si já é autobiográfico, visto que o escritor austríaco
Leopold von Sacher-Masoch reproduziu as relações de dominação que
mantinha em sua vida íntima. O masoquismo, tema principal do
romance, é um termo criado a partir do sobrenome do escritor.
No
filme de Polanski, adaptação ao cinema da peça homônima de David
Ives, um diretor de teatro está em busca uma atriz principal para
sua releitura do livro e o processo também traz à tona vários dos
seus conflitos. O filme, que se passa inteiro num teatro, é composto
pela disputa de poder entre o artista e sua musa. Para isso,
Polanski intercala o onírico e o mundano, num exercício que nos
relembra de que a atriz jamais poderia ser somente um arquétipo fruto da fantasia.
De
modo geral, A Pele de Vênus, então, é o resultado das inúmeras
cruzes que Polanski carregou ao longo da vida, além de uma
representação incontestável de relações de sexo e culpa que o
cineasta exorciza na sua obra. Embora este seja um filme genuinamente
aberto por tratar de filosofia, arte, autoconhecimento, Polanski é
um impecável maestro da encenação, na noção mais pura do teatro,
que é tornar a linguagem verbal uma expressão corporal.
3.
Boi Neon, de Gabriel Mascaro
O
pernambucano Boi Neon e traz um microcosmo muito particular, o dos
trabalhadores nômades de vaquejadas, obrigados a viajar entre
cidades onde os eventos são sediados. A função de Iremar (Juliano
Cazarré) é preparar os bois para os torneios, ao mesmo tempo que
neste ínterim sonha em se tornar desing de moda. Um “boi neon”,
um “vaqueiro estilista”, utopias discrepantes, distantes, quase
irreais. Todavia, o personagem insiste em desenhar roupas, criar
modelos, até que, assim como os bois, imprensados entre as cercas,
percebe que não há escapatória. Sonhar é consentido, pois
dinamiza o corriqueiro de nossas vidas, desde que a realidade nos
aprisione logo em seguida.
Gabriel
Mascaro trabalha na densidade de um enredo que não nos engana: por
mais onírico que pudesse ser, há uma pontual perversão de
expectativas. A frustração toma o lugar da idealização.O
longa-metragem declara também que rótulos reduzem nossa
pluralidade. Julgar deliberadamente é minimizar o ser. As figuras de
Galega (Maeve Jinkings) e sua filha, a garotinha Cacá (Alyne
Santana) refletem justamente isso, a dureza de uma vida onde a mulher
é subjulgada por realizar um trabalho “genuinamente” masculino.
Tecnicamente:
muita luz natural, fotografia escurecida em planos fechados,
personagens imprensados por cercas e cortes abruptos. Tudo isso
através de nós mesmos, espectador observador de uma narrativa de
formas cronologicamente lentas, uma rotina sem fim; linear. Boi Neon
se preocupa com o futuro, mesmo que apenas por meio de idealismo,
apresentado em suas fragilidades, incoerências e decadências.
2.
Que Horas Ela Volta, de Anna Muylaert
Regina
Casé assustadoramente impecável no papel da empregada Val, que
trabalha para uma família de elite em São Paulo, não vê sua filha
há tempos. Ao exercer a função de doméstica, inconscientemente a
substituiu pelo filho dos patrões que ajudou a criar. No entanto,
Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, sai de Pernambuco para
prestar vestibular em São Paulo e o reencontro com a mãe se torna
uma luta de classes dentro do casarão, onde o filme hegemonicamente
se dá.
Regina
Casé traz a anulação do estereótipo da nordestina tipicamente
mostrada nos dramas novelescos da Globo. Já Camila Márdila nos
revela a indignação que não há na personagem de Val, a revolução.
Já a patroa vil (Karine Teles), beira uma caricaturada vilã dos
contos Disney, além do pai da família (Lourenço Mutarelli), figura
de um homem frouxo e recessivo. A obra é repleta de metáforas e
acidez através do elemento risível, e concorre a uma vaga na
categoria de filmes estrangeiros na premiação do Oscar 2016.
1.
Divertida Mente (Inside
Out), de Peter
Docter
A
Disney em mais uma parceria com a Pixar, retorna à sua melhor forma
nesta animação escrita e dirigida por Pete Docter. O que mais me
impressiona na obra é o roteiro, porque temos aqui o estudo de
conceitos completamente abstratos. Afinal, a trama gira em torno (e
dentro) da mente de uma garotinha, Riley, tendo como protagonistas as
cinco emoções responsáveis por sua condução: Alegria, Tristeza,
Raiva, Medo e Nojinho (ou repulsa). Cada emoção possui cor e
temperamentos próprios, num primoroso estudo imagético. Na verdade,
Divertida Mente é psicologia pura. Vários são os conceitos
adaptados em alegorias: o poder do inconsciente e sonhos; a
sexualidade e até mesmo a depressão. Divertida Mente discursa ainda
contra a vilanização da tristeza e mostra a importância de lidar
com ela no cotidiano, ao invés de afugentá-la de toda maneira.
Inclusive, a personificação desse sentimento no filme é uma das
personagens mais carismáticas e queridas dos espectadores.
A
Pixar conseguiu, ao longo dos anos, criar universos bastante
criativos a partir de situações inusitadas. Assim foi com Toy Story
(universo dos brinquedos), Procurando Nemo (a vida no oceano),
Monstros S.A. (uma criança como ameaça aos monstros) e outros
tantos. Com Divertida Mente o estúdio se superou, porque além de
tudo ainda teve que buscar meios extremamente criativos para tornar
concreto e viável algo que não é palpável, tornando a produção
digesta para todos os públicos.
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