quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Aquarius: um tratado de luta



Resistência às empreiteiras, ao projeto Novo Recife, ao governo vigente e ao golpe. Aquarius é, acima de tudo, um tratado acerca da luta. Clara, personagem de Sônia Braga, mergulha no mar da praia de Boa Viagem como quem parece não temer os tubarões. E ela não os teme. Temer jamais!

O segundo longa do pernambucano Kléber Mendonça Filho traz, assim como no anterior O Som ao Redor, um microcosmo muito particular de uma realidade sociopolítica não só inerente à cidade do Recife -onde hegemonicamente é realizado- por isso se configura universal.

Aquarius ganhou repercussão antes mesmo de estrear nas salas do Brasil, vide protesto no tapete vermelho do Festival de Cannes (França), onde concorria em algumas categorias, entre elas melhor filme e atriz. O ato de enfrentamento foi realizado por parte do elenco e produção e alertava acerca do golpe em curso que vivia (ou vive) o nosso país. Nada mais natural, se tratando de uma obra que toca nesta ferida, ainda que sutilmente, isenta de peso de denúncia.

Não é natural, por outro lado, a obra sofrer intervenções políticas na sua distribuição ou em outros setores do processo criativo. Em contrapartida, o famigerado Ministério da Cultura (de existência frágil no governo Temer) mexeu os pauzinhos para destituir a indicação do longa ao Oscar.

Assistimos mais doses de veneno autoritário para o embrutecimento coletivo! São motins subjetivos aos quais estamos sujeitos a sofrer todos os dias, assim como Clara. Assim como Sônia. Tanto personagem como atriz se tornam arquétipos próprios desta obra. Como elas, o filme não foi combatido, como antes se combatia formas de arte consideradas inoportunas. Ou até como era polemizada e crucificada a figura de um sex symbol, como Sônia nos anos setenta. Tal qual a narrativa, aqui a sutileza se faz presente e concebe uma espécie de censura acanhada, sem cruzes ou fogueiras, mas carregada de sordidez em “pequenos” atos: exclusão da indicação ao Oscar, no limite da indicação etária, etc.

E quando essa tentativa de silenciamento é confrontada, na trama, pela resistência de uma figura feminina madura, sem temores, sendo como é -metonímia ao Edf. Aquarius- percebemos que a luta dela é contra convenções. O embate imobiliário é apenas o pano de fundo para todas estas perversões de expectativas que o longa sugere nas entrelinhas.

A personagem de Sônia é como o nome adianta, clara. E a transparência nesta alegoria do ser mostra que ela também é capaz de reproduzir modos tipicamente burgueses, como frequentar restaurantes finos ou até ter um carro importado na garagem - ainda que isso não invalide de forma alguma o mote de sua luta. Mais uma vez Kléber indica que estereotipar minimiza. Por isso saiba que Aquarius irá dizer mais sobre você do que sobre ele mesmo.

Além de toda essa carga subjetiva, o filme é tecnicamente um deleite. Os flashbacks ao Recife de antigamente são primorosamente realizados- um ponto e tanto para o trabalho de direção de arte de Thales Junqueira e Juliano Dornelles.

A trilha sonora diegética, por vezes até verbalizada, trata acerca da força do som e das memórias. O longa também transporta uma certa atmosfera de suspense, que tudo tem a ver com o contexto cavernoso vivenciado pelo país durante sua concepção. Me parece, utilizando de licença poética, que Aquarius se torna ainda mais metafórico, histórico e enérgico por conta esta “coincidência”.

Li uma frase retirada de uma crítica que diz Aquarius ser um presente de Kléber à Sônia Braga. Mas se lutamos, se derrubamos tabus e resistimos, somos todos Sônia. Somos todos Clara.

Obrigada pelo presente, Kléber.


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