quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Orgia de temores


Que o cinema não é a realidade em si, todos sabemos. Curiosamente buscamos envolvimento catártico durante sua projeção; um trampolim para mergulhar no oceano da fantasia e do sonho. Quando o potencial lúdico de um filme, entretanto, é posto em xeque através de temática recorrente a uma esfera palpável, o limiar entre ilusão e real se confunde. “Repulsion” (Repulsa ao Sexo), 1965, de Roman Polanski, é um exemplo claro desta perspectiva. Além disso, o diretor polaco realiza a façanha de narrar toda esta obra sob o olhar introvertido e perturbador de Carol Ledoux, vivida pelo maior frenesi sexual da época, a estonteante Catherine Deneuve. Igualmente inspirada, a atriz realiza construção perfeita de personagem: linguagem corporal, gestos e olhares sustentam cerca de 100 minutos de duração do longa, que encontra na elegância do P&B um determinante elemento estético.

Carol (Deneuve) é posta como personificação dos ares da modernidade juvenil britânica, mas o contrassenso ocorre quando notamos a contínua deformação sofrida pela personagem à medida que sua sanidade é regida por agonias transpostas em tiques nervosos, comportamentos dispersos, transtornos obsessivos compulsivos (toc), e principalmente por uma aparente aversão a tudo que advém do masculino. É nessa ótica que Polanski abusa de todo seu domínio técnico e nos insere de vez nesse universo: os sons ambientes são elevados (ponteiro do relógio, gotas d'água, badalar do sino, maquinário do elevador). Todo e qualquer ruído se torna motivo de apreensão. Somos forçados a sair da zona de conforto, do lugar comum. Gera-se a dúvida; a expectativa é estabelecida através do mal-estar.

O primeiro longa da intitulada “Trilogia do Apartamento”, que tem sequência sem ligamentos narrativos com “Rosemary's Baby” (O Bebê de Rosemary), 1968 e “The Tenant” (O Inquilino), 1976, é o que podemos classificar como a obra mais esquizofrênica do diretor. Até hoje, cerca de 50 anos após seu lançamento, “Repulsion” é capaz de corroborar uma angustia sem igual à platéia que o contempla. Polanski realizou este feito com aparente baixo orçamento fílmico. O referido ambiente de tensão é criado com extrema simplicidade, porém bastante eficácia no que pretende. A grande maioria das cenas se desenvolvem dentro do apartamento de Carol. O cenário hegemônico é um convite à claustrofobia. Sobretudo, a fotografia opressiva, os jogos de sombras e planos fechados nos rostos dos atores dão constantes indícios que algo de errado está para acontecer a qualquer instante.

Ainda durante a cena inicial, com o passar dos créditos, o simultâneo olhar inexpressivo e perdido de Carol regido pela intensa trilha sonora não nos deixa enganar, e Polanski é transparente desde o início: há inserido na narrativa um grande mistério, todavia nos é constantemente transmitido com extrema lhaneza. A existência de poucos diálogos também acaba por nos inserir no mundo ermo de Carol, que irá acentuar-se quando a irmã viaja temporariamente, e a garota se vê forçada à solidão. É neste cenário que o psicológico da personagem é colocado à prova. A utilização da metáfora com o coelho em decomposição é genial. Esta tática narrativa funciona como uma espécie de termômetro de sua sanidade. E o que falar do olhar atento de Carol sob à rotina do convento vizinho? Esta cena levanta no espectador, questionamentos sobre o que é ser livre, ou o que é de fato a liberdade, visto que a personagem é vítima da própria prisão psicológica. Mas é na maneira como observa as freiras, “possivelmente realizadas num mundo sem homens”, que encontramos um dos principais vestígios de que há algo realmente deturpado em sua sexualidade.

Através desse viés, o epílogo tem início. Carol passa a ouvir passos, ver vultos e sombras, ouvir rangidos e finalmente ser vítima de estupros ao cair da noite – cenas filmadas com close-ups abruptos e ausência de sons ou trilha durante o ato sexual, gerando mais ênfase à estranheza. Polanski maestralmente atinge um grau narrativo pouco visto no cinema quando simplesmente joga a bola para o espectador decidir, igualmente sozinho, entre o real e o imaginário. Não realizar esta diferenciação é o ponto alto da trama. A partir daí surgem, nas “visões” da personagem, rachaduras nas paredes do apartamento, mais uma metáfora usada como simbologia de ruptura de seu controle mental. Passamos então a nos indagar o porque desta condição de Carol. A repulsa ao masculino é chocada quando a garota, em algumas passagens do filme, permitiu-se ser beijada por um rapaz que a cortejava, ou até quando aspirou a camisa do amante da irmã. Tais ações más sucedidas por reações de verdadeira aversão nos oferece um quadro de dualidade sufocante, onde o desejo é reprimido por um possível trauma.


Enquanto tentamos descobrir respostas, Polanski nos mergulha numa espiral de loucura e violência, onde a delimitação do pesadelo e realidade permanece em segundo plano. No entanto, é durante o ápice com direito a homicídios e perda completa da psiquê da garota, que nos é finalmente concedido algo verossímil. A irmã da personagem retorna e se depara com um cenário devastador. Polanski, por sua vez surge com a última carta na manga: num close-up lento apreciamos uma antiga fotografia da família. A chave interpretativa acontece pelo foco dado ao olhar assustado de Carol para o homem à sua esquerda, supostamente seu pai. Hipóteses de abusos sexuais durante a infância são implicitamente manifestadas, entretanto a conclusão é deixada novamente a cargo da platéia: teria Carol entrado em conflito por haver um horror em seu passado? A última imagem da personagem é justamente no colo de um homem, o amante de sua irmã, aparentemente o único disposto a fazer algo para salvá-la. Esta ironia ao final sugere o exercício da reflexão sobre temores e o quanto nos limitam. “Repulsion” consagra, portanto, Polanski como verdadeiro arquiteto na construção psicanalítica de seus personagens, e nós, exímios indagadores da condição humana.




Nenhum comentário:

Postar um comentário