Que o cinema não é a realidade em si, todos sabemos. Curiosamente buscamos envolvimento catártico durante sua projeção; um trampolim para mergulhar no oceano da fantasia e do sonho. Quando o potencial lúdico de um filme, entretanto, é posto em xeque através de temática recorrente a uma esfera palpável, o limiar entre ilusão e real se confunde. “Repulsion” (Repulsa ao Sexo), 1965, de Roman Polanski, é um exemplo claro desta perspectiva. Além disso, o diretor polaco realiza a façanha de narrar toda esta obra sob o olhar introvertido e perturbador de Carol Ledoux, vivida pelo maior frenesi sexual da época, a estonteante Catherine Deneuve. Igualmente inspirada, a atriz realiza construção perfeita de personagem: linguagem corporal, gestos e olhares sustentam cerca de 100 minutos de duração do longa, que encontra na elegância do P&B um determinante elemento estético.
Carol
(Deneuve) é posta como personificação dos ares da modernidade
juvenil britânica, mas o contrassenso ocorre quando notamos a contínua deformação sofrida pela personagem à medida que sua
sanidade é regida por agonias transpostas em tiques nervosos, comportamentos dispersos, transtornos obsessivos compulsivos (toc),
e principalmente por uma aparente aversão a tudo que advém do
masculino. É nessa ótica que Polanski abusa de todo seu domínio
técnico e nos insere de vez nesse universo: os sons ambientes são
elevados (ponteiro do relógio, gotas d'água, badalar do sino,
maquinário do elevador). Todo e qualquer ruído se torna motivo de
apreensão. Somos forçados a sair da zona de conforto, do lugar
comum. Gera-se a dúvida; a expectativa é estabelecida através do
mal-estar.
O
primeiro longa da intitulada “Trilogia do Apartamento”, que tem
sequência sem ligamentos narrativos com “Rosemary's Baby” (O
Bebê de Rosemary), 1968 e “The Tenant” (O Inquilino), 1976, é o
que podemos classificar como a obra mais esquizofrênica do diretor.
Até hoje, cerca de 50 anos após seu lançamento, “Repulsion” é
capaz de corroborar uma angustia sem igual à platéia que o
contempla. Polanski realizou este feito com aparente baixo orçamento
fílmico. O referido ambiente de tensão é criado com extrema
simplicidade, porém bastante eficácia no que pretende. A grande
maioria das cenas se desenvolvem dentro do apartamento de Carol. O
cenário hegemônico é um convite à claustrofobia. Sobretudo, a
fotografia opressiva, os jogos de sombras e planos fechados nos
rostos dos atores dão constantes indícios que algo de errado está
para acontecer a qualquer instante.
Ainda
durante a cena inicial, com o passar dos créditos, o simultâneo
olhar inexpressivo e perdido de Carol regido pela intensa trilha
sonora não nos deixa enganar, e Polanski é transparente desde o
início: há inserido na narrativa um grande mistério, todavia nos é
constantemente transmitido com extrema lhaneza. A existência de
poucos diálogos também acaba por nos inserir no mundo ermo de
Carol, que irá acentuar-se quando a irmã viaja temporariamente, e a
garota se vê forçada à solidão. É neste cenário que o
psicológico da personagem é colocado à prova. A utilização da
metáfora com o coelho em decomposição é genial. Esta tática
narrativa funciona como uma espécie de termômetro de sua sanidade. E o que falar do olhar atento de Carol sob à rotina do
convento vizinho? Esta cena levanta no espectador, questionamentos sobre o que é ser livre, ou o que é de fato a liberdade, visto que
a personagem é vítima da própria prisão psicológica. Mas é na
maneira como observa as freiras, “possivelmente realizadas num
mundo sem homens”, que encontramos um dos principais vestígios de
que há algo realmente deturpado em sua sexualidade.
Através
desse viés, o epílogo tem início. Carol passa a ouvir passos, ver
vultos e sombras, ouvir rangidos e finalmente ser vítima de estupros
ao cair da noite – cenas filmadas com close-ups abruptos e ausência
de sons ou trilha durante o ato sexual, gerando mais ênfase à
estranheza. Polanski maestralmente atinge um grau narrativo pouco
visto no cinema quando simplesmente joga a bola para o
espectador decidir, igualmente sozinho, entre o real e o imaginário.
Não realizar esta diferenciação é o ponto alto da trama. A
partir daí surgem, nas “visões” da personagem,
rachaduras nas paredes do apartamento, mais uma metáfora usada como
simbologia de ruptura de seu controle mental. Passamos então a nos
indagar o porque desta condição de Carol. A repulsa ao masculino é
chocada quando a garota, em algumas passagens do filme, permitiu-se
ser beijada por um rapaz que a cortejava, ou até quando aspirou a
camisa do amante da irmã. Tais ações más sucedidas por reações
de verdadeira aversão nos oferece um quadro de dualidade sufocante,
onde o desejo é reprimido por um possível trauma.
Enquanto
tentamos descobrir respostas, Polanski nos mergulha numa espiral de
loucura e violência, onde a delimitação do pesadelo e realidade
permanece em segundo plano. No entanto, é durante o ápice com
direito a homicídios e perda completa da psiquê da garota, que nos
é finalmente concedido algo verossímil. A irmã da personagem retorna e se depara com um cenário devastador. Polanski, por sua vez surge com a última carta na manga: num close-up lento
apreciamos uma antiga fotografia da família. A chave interpretativa
acontece pelo foco dado ao olhar assustado de Carol para o homem à
sua esquerda, supostamente seu pai. Hipóteses de abusos sexuais
durante a infância são implicitamente manifestadas, entretanto a
conclusão é deixada novamente a cargo da platéia: teria Carol
entrado em conflito por haver um horror em seu passado? A última
imagem da personagem é justamente no colo de um homem, o amante de
sua irmã, aparentemente o único disposto a fazer algo para
salvá-la. Esta ironia ao final sugere o exercício da reflexão
sobre temores e o quanto nos limitam. “Repulsion” consagra,
portanto, Polanski como verdadeiro arquiteto na construção
psicanalítica de seus personagens, e nós, exímios indagadores
da condição humana.
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