Adentrar
o univerno onírico de Lynch e desbravar todos seus simbolismos e
metáforas jamais será uma tarefa fácil. Muitas vezes penso que
ele, e apenas ele, seja capaz de indicar o caminho para uma
explicação razoável e “perfeita” da própria obra. As aspas se
justificam atráves de uma tendência do diretor ao bizarro, à
imperfeição que permeia e norteia as nossas vidas todos os dias.
Lynch frequentemente nos revela uma suposta tranquilidade
aparentemente indissolúvel que está prestes a ser interrompida,
seja na forma de uma mangueira retorcida, tendo seu fluxo de água
bloqueado, ou na crueza da câmera a nos revelar, sob a beleza de um
jardim florido, um mundo repulsivo de criaturas monstruosas: debaixo
da grama os insetos remoem a terra e compõem uma paisagem obscura de
devastação.
Ambas
as passagens descritas acima fazem parte do que é por muitos eleito
o masterpiece de David Lynch, Blue Velvet (Veludo
Azul – 1986). O longa transmite uma atmosfera onírica e
sensibilidade desnorteante de um filme noir dos anos 50 com ares
modernos, mesclado a um típico romance puro de colegiais, além de
todo o thriller que rege a trama. É exposta também uma narrativa
explicitamente dicotômica entre o bem e o mal, questões morais são
levantadas a alto nível, enquanto que, por outro lado, encontramos
personagens dúbios com direito a doses de voyeurismo, fetichismo e
sadomasoquismo. Blue Velvet também e principalmente sugere, entre
outras coisas, uma ácida crítica ao “american way of life”,
assim como a maioria das obras do diretor, e indica metaforicamente
que sempre há sujeira sob o tapete limpo. No caso, o tapete é
justamente a sociedade norte-americana. O filme é a verdadeira e
hiper-real expressão do que jaz sob a superfície.
O
multiartista Lynch concebeu Blue Velvet cerca de dez anos antes de
seu lançamento. O cineasta vinha de uma frustrante adaptação do
livro Duna, onde, segundo ele, os produtores desvirtuaram
consideravelmente o resultado final da obra. A exemplo do que
aconteceu com outros diretores autorais como Cronenberg, Kubrick e
Carpenter, Blue Velvet representou sua carta de alforria artística.
A partir de então, seus projetos passaram a ser pessoais.
O cinema
de David Lynch é repleto de sentidos e sensações. Diálogos,
canções e imagens são organizados cautelosamente para a
composição deste universo pretensiosamente morfeico.
A trilha de Blue Velvet composta por canções antigas
– como a música tema do longa, Blue Velvet na
versão lacrimosa de Bobby Vinton, e instrumentações
de composições originais se apresentam através de
acontecimentos que soam irreais e sugestionam toda
uma cruel realidade que está escondida além das
“aparências”, da fachada da sociedade norte-americana,
que se põe como modelo para o mundo civilizado.
Superficialmente
a cidade-cenário do filme é a representação estética do sonho
estadunidense, a vida perfeita, aquela comercializada nas propagandas
publicitárias. A tranquilidade é
aparentemente inviolável. No entanto, Lynch nos prova
exatamente o contrário. A calmaria é interrompida quando o
personagem principal, Jefrey, encontra uma orelha humana na grama, já
em início de processo de decomposição. A câmera de Lynch não só
faz questão de mostrá-la, como também adentrá-la. A orelha serve
como uma espécie de portal e uma tática narrativa genial, pois é a
partir daí que mergulhamos no outro lado desta suposta
realidade: saímos do sonho idealizado, a medida que surge
o pesadelo. Essa combinação de sofrimento e deslumbre nos
legisla. Um extremo precisa existir para que o outro também exista,
e é a partir deste paradoxo subversivo que a trama se desenrola.
O
longa respira ares de sarcasmo durante todos os seus 120 minutos. O
romântico soa brega, o perverso um deboche, o erótico um atentado
violento. E é nesta ótica que nos entregamos ao espetáculo. Um
suspense oitentista de primeira? Uma aventura juvenil? Um noir
moderno? Lynch nos deixa a cargo de escolha. Blue Velvet pode ser o
que quisermos. E porque não tudo? O deslumbre e o horror abre espaço
a uma gama de sensações como poucas vezes viu-se no cinema.
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