segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Mais azul do que o veludo era a noite


Adentrar o univerno onírico de Lynch e desbravar todos seus simbolismos e metáforas jamais será uma tarefa fácil. Muitas vezes penso que ele, e apenas ele, seja capaz de indicar o caminho para uma explicação razoável e “perfeita” da própria obra. As aspas se justificam atráves de uma tendência do diretor ao bizarro, à imperfeição que permeia e norteia as nossas vidas todos os dias. Lynch frequentemente nos revela uma suposta tranquilidade aparentemente indissolúvel que está prestes a ser interrompida, seja na forma de uma mangueira retorcida, tendo seu fluxo de água bloqueado, ou na crueza da câmera a nos revelar, sob a beleza de um jardim florido, um mundo repulsivo de criaturas monstruosas: debaixo da grama os insetos remoem a terra e compõem uma paisagem obscura de devastação.

Ambas as passagens descritas acima fazem parte do que é por muitos eleito o masterpiece de David Lynch, Blue Velvet (Veludo Azul – 1986). O longa transmite uma atmosfera onírica e sensibilidade desnorteante de um filme noir dos anos 50 com ares modernos, mesclado a um típico romance puro de colegiais, além de todo o thriller que rege a trama. É exposta também uma narrativa explicitamente dicotômica entre o bem e o mal, questões morais são levantadas a alto nível, enquanto que, por outro lado, encontramos personagens dúbios com direito a doses de voyeurismo, fetichismo e sadomasoquismo. Blue Velvet também e principalmente sugere, entre outras coisas, uma ácida crítica ao “american way of life”, assim como a maioria das obras do diretor, e indica metaforicamente que sempre há sujeira sob o tapete limpo. No caso, o tapete é justamente a sociedade norte-americana. O filme é a verdadeira e hiper-real expressão do que jaz sob a superfície.

O multiartista Lynch concebeu Blue Velvet cerca de dez anos antes de seu lançamento. O cineasta vinha de uma frustrante adaptação do livro Duna, onde, segundo ele, os produtores desvirtuaram consideravelmente o resultado final da obra. A exemplo do que aconteceu com outros diretores autorais como Cronenberg, Kubrick e Carpenter, Blue Velvet representou sua carta de alforria artística. A partir de então, seus projetos passaram a ser pessoais.

O cinema de David Lynch é repleto de sentidos e sensações. Diálogos, canções e imagens são organizados cautelosamente para a composição deste universo pretensiosamente morfeico. A trilha de Blue Velvet composta por canções antigas – como a música tema do longa, Blue Velvet na versão lacrimosa de Bobby Vinton, e instrumentações de composições originais se apresentam através de acontecimentos que soam irreais e sugestionam toda uma cruel realidade que está escondida além das “aparências”, da fachada da sociedade norte-americana, que se põe como modelo para o mundo civilizado.

Superficialmente a cidade-cenário do filme é a representação estética do sonho estadunidense, a vida perfeita, aquela comercializada nas propagandas publicitárias. A tranquilidade é aparentemente inviolável. No entanto, Lynch nos prova exatamente o contrário. A calmaria é interrompida quando o personagem principal, Jefrey, encontra uma orelha humana na grama, já em início de processo de decomposição. A câmera de Lynch não só faz questão de mostrá-la, como também adentrá-la. A orelha serve como uma espécie de portal e uma tática narrativa genial, pois é a partir daí que mergulhamos no outro lado desta suposta realidade: saímos do sonho idealizado, a medida que surge o pesadelo. Essa combinação de sofrimento e deslumbre nos legisla. Um extremo precisa existir para que o outro também exista, e é a partir deste paradoxo subversivo que a trama se desenrola.


O longa respira ares de sarcasmo durante todos os seus 120 minutos. O romântico soa brega, o perverso um deboche, o erótico um atentado violento. E é nesta ótica que nos entregamos ao espetáculo. Um suspense oitentista de primeira? Uma aventura juvenil? Um noir moderno? Lynch nos deixa a cargo de escolha. Blue Velvet pode ser o que quisermos. E porque não tudo? O deslumbre e o horror abre espaço a uma gama de sensações como poucas vezes viu-se no cinema. 

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