terça-feira, 11 de agosto de 2015

O legado didático do cinema de Kubrick

O cineasta americano Stanley Kubrick (1928-1999) e sua obra continuam a exercer influência pontual aos artistas do cinema e da arte contemporânea. A contribuição do trabalho do diretor aos cineastas que surgiram desde a década de 70 é visível. Filmes como Laranja Mecânica (1971), O Iluminado (1980), 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e De Olhos Bem Fechados (1999) são marcos essenciais da arte cinematográfica e da experimentação narrativa. Por essa razão Kubrick utilizou-se abundantemente do cinema de gênero: terror, ficção científica, histórico, drama, e até mesmo comédia. Os seus métodos meticulosos, a exemplo das inúmeras repetições de takes, além de grande capacidade inventiva, como o uso das lentes adaptadas pela NASA e utilizadas nas filmagens de Barry Lyndon (1975), o tornaram um dos mais importantes realizadores da história do cinema.

A herança intensa, bem como simpatia revelada pelo humanismo austero na obra de Kubrick, se mostram ainda mais claras nos filmes de ficção científica, por conta do marco que foi 2001: Uma Odisseia no Espaço, e seus elementos de linguagem sensorial, métodos narrativos corajosos, além do trabalho minucioso da trilha sonora. Realizadores de filmes como Alien (1979), Blade Runner – O caçador de Andróides (1982), e os mais recentes Lunar (2009), Gravidade (2013) e Interestelar (2014) já comentaram o legado didático de Kubrick em suas obras e admitem beber da fonte do diretor para obter inspiração. “Sempre que uma trama viaja para fora do planeta é inevitável pensar em 2001. Mas só existe um único 2001 e um único Stanley Kubrick. Ele é inimitável. Mas você pode se inspirar a tentar ter esse tipo de confiança que ele teve”, disse o diretor Christopher Nolan a respeito da influência de Stanley Kubrick sobre a sua recente obra de ficção científica espacial, Interestelar.

O estudante recifense de Rádio e TV, Wagner Dantas, aponta o perfeccionismo nas várias etapas da produção como uma das causas do legado deixado por Kubrick aos cineastas posteriores, onde se inclui trilha sonora, adaptação de roteiro e movimentação de câmera. “Suas referências são muito marcantes e usualmente utilizadas por outros diretores. O ponto de perspectiva centralizada, algo bem organizado simetricamente diante das lentes utilizado recentemente pelo diretor Wes Anderson em O Grande Hotel Budapeste (2014), me remeteu automaticamente a O Iluminado (1980), por exemplo”, pontua Wagner.

Essa relação instantânea com outras obras, muitas vezes não justificada pelos próprios realizadores, sugere ainda assim a importância de características marcantes da obra de Kubrick não só para a escola do cinema mundial, mas para os seus consumidores, comprovando o grande caráter democrático de sua herança.

Kubrick foi um dos poucos cineastas a entender a fórmula entre a qualidade artística e linguagem industrial do cinema americano. Dono deste raro talento foi um dos cineastas mais técnicos de todos os tempos, e usava toda tecnologia disponível a favor da narrativa. Neste sentido, o estudante de Rádio e TV, Wagner Dantas, também elenca o encaixe das trilhas sonoras no roteiro como outro ponto fortíssimo na filmografia do diretor: “A participação do som na narrativa do filme O Iluminado se torna uma espécie de termômetro psicológico do personagem principal, Jack Torrance, e de suas atitudes enquanto vai mudando de personalidade. Esse exemplo foi reproduzido em diversos filmes do gênero terror. No filme Melancolia (2012)de Lars von Trier, a trilha sonora se assemelha a algo de O Iluminado por fazer esse mesmo estudo mental de seus personagens, além de causar estranheza melódica por ter um ponto de vista não convencional. Kubrick também mostrou entendimento sobre criticas sociais em Laranja Mecânica com a pergunta “Você abriria a porta de sua casa para um estranho se ele precisasse de ajuda?” Este método foi o mesmo seguido pelo diretor Michael Haneke em Violência Gratuita (1997)”.

Além das questões técnicas, o cinema de Kubrick marcou pela sensibilidade delicada e pelas audácias políticas e estéticas unidas em prol de um diálogo social primoroso. Sua quebra com a tendência da indústria cultural, todavia, tem uma característica bastante curiosa. A inspiração para seus enredos não era inovadora. Muito pelo contrário. Era na tradição literária que Kubrick buscava as sementes para sua criatividade imagética. Seu ponto de inovação estava mais sobre a forma que sobre o conteúdo.

O resultado do debruçamento de Kubrick sobre obras literárias arrebatadoras que não se esgotavam quando transpostas para atuação, sons e enquadramento foi um cinema, embora hollywoodiano, como obra de arte com identidade própria, proveniente dos recursos específicos da linguagem audiovisual, e ainda assim vendável. Em Kubrick a literatura renascia como filmes. E os filmes, pelo apuro no domínio estético da linguagem cinematográfica, se eram derivados de livros, não eram cópias: tornou-se o caminho da sétima arte para realizar a proeza da adaptação em vez da cópia, era outra expressão da mesma inspiração, original.

Stanley Kubrick potencializou o espírito de uma época em profunda mudança estético-cultural que foram os anos 60, e redelineou o cinema comercial, até então baseado predominantemente em narrativas épicas e dramas romanescos. Ele foi um dos poucos que, finalmente, mostrou ao mundo que existem ideias, sensações e sentimentos que só podem ser expressos por meio de imagens em movimento.

O cinema hollywoodiano não era substitutivo da literatura, uma narrativa linear, uma novela estendida ou um dramalhão. O grande público estava diante pela primeira vez de obras comerciais arrebatadoras, e ao mesmo tempo completamente desafiadoras e ousadas para o que se entendia por cinema de "contação" de histórias de até então. Justamente em 1968, o ano de estreia de 2001: Uma Odisséia no Espaço, foi também o ano do estopim dos movimentos de protestos juvenis no mundo inteiro. Kubrick catalisou e expressou em imagens o espírito de toda uma geração que não encontrava mais vazão para suas aspirações de liberdade por aqui, no planeta Terra.

Desde o pioneirismo tecnológico utilizado em 2001- Uma Odisseia no Espaço, da fotografia de luzes naturais de Barry Lyndon, até o uso da steadicam em O Iluminado, Kubrick era incansável e irredutível na busca por novas formas de se fazer cinema. Em uma das cenas de Laranja Mecânica, numa loja da Inglaterra futurista, em plano aberto o personagem principal, Alex DeLarge, surge analisando discos na prateleira principal, e logo abaixo enxergamos o vinil de 2001: Uma Odisseia no Espaço. Comprova-se mais uma vez a importância e o divisor de águas que foi a obra, tanto no sentido imagético, estético, sensorial e sonoro, para o próprio diretor, para o público e para os cineastas posteriores. Stanley Kubrick sentencia que se tornara, a partir de então, sua própria referência na arte cinematográfica. 

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